01/04/11

Cátia, um fairy-tale sobre a destruição


Vivera sempre em Setúbal. Claro, na sua cabeça, noutro sítio qualquer, que eu desconheço. O pai, pescador. A mãe, peixeira. Sempre se sentira fora de tudo, fora de todos, fora dela, até. Na escola, desenvolvera uma alegria bestial, mesmo que à vista de toda a gente, ela fosse a pessoa mais infeliz do mundo. Tinha, em mente, entrar em Medicina e, isso, só isso, poderia fazê-la alguma vez, feliz. Nunca nenhum rapaz se masturbara a pensar nela e, muito menos, nenhum rapaz teve a coragem de a conhecer. Via, nos professores, o único amor que conseguia agarrar. Apesar de não viver numa mansão, ela tinha sido criada entre a mais bela das frugalidades, uma frugalidade cheia de amor e atracada ao mar. Desde cedo, achara os pais uns ignorantes, que desprezara. Os pais, no entanto, trabalhavam, trabalhavam, trabalhavam e, quando, vinham crises e crises e cortes de orçamento, só continuavam labutando, em nome dela, em nome da sua querida Cátia. Cátia era magra, um palito, escanzelada e feia. Ela evitava ter espelhos no quarto e nem percebia o quanto se odiava, pois quando lia os manuaizinhos de liceu, achava-se numa alta cadeira de platina, mas ela não sabia nada, nada, nada, nem metade do que os pais tinham aceite saber pela vida dura que levavam. Cátia evitava dizer às pessoas que os pais viviam à custa dos frutos-do-mar. Cátia achava-se vítima de tudo e de todos e tinha uma pena gigante dela própria, porque achava que ou tinha sido Deus ou o Destino ou coisa que o valha que a tinham atirado em tamanha desgraça. Detestava Setúbal, com todas as suas forças e queria matar todas aquelas pitas irritantes, cheias de roupas na moda, namorados e outras futilidades, para não falar dos mitras que soltavam agudos berros de gozo, quando a viam. Usava uns óculos velhos, cujos aros estavam seguros com fita-cola. No décimo segundo ano, a sua felicidadezeca em sair daquele mundo, que ela pensava que só existia ali, estava enorme, gigante. Quando chegaram os exames nacionais, achava que nada a podia deter e gabava-se das suas notas sem abrir a boca e falar dela a ninguém, “uma média de dezanove não é para todos, tenho algo de especial”, ecoavam, assim, pensamentos, dentro dela. No entanto, ela mal sabia que ia ser abençoada com uma tragédia e dois meses antes dos exames, ela partira a perna, quando jogava futebol, numa aula de educação física, aula em que, mesmo que ela pusesse o seu corpinho magrinho a suar, nunca conseguia mais do que um dezasseiszeco, algo que a agoniava. Devido “à maior tragédia da vida dela”, ela tivera de passar oito horas, nas urgências, à espera de ser atendida, porque “os inúteis dos meus pais nem me dão dinheiro para ir a um hospital privado”. Logo, parte do tempo que a Cátia devia estar a pseudo-estudar - porque ela pensava que decorar fórmulas matemáticas e métodos de resolução de equações, que ela já sabia que, infalivelmente, apareceriam no exame - a enchia de conhecimento e poderio intelectual...mas, em vez disso, passou horas nos chatos rituais que levam a perna de qualquer pessoa a voltar a um estado, mais ou menos, aceitável. Mesmo assim, ela sabia que nada a poderia deter e, no dia do exame de matemática, saíra exactamente uma questão complícadissima “do único capítulo que eu me esqueci de rever”. Cátia, nesse mesmo momento, nunca poderia estar decorada de mais ódio e uma vontade de acabar com o mundo, que, de facto, só expressava o desejo que ela tinha de se matar a si mesma. Enquanto as pitas irritantes ganhavam bronze em Tróia e desenvolviam uma data de vitamina D, ela passava os dias a ver os programas matinais para velhos da TVI, sempre com o medo do dia em que o resultado do exame de matemática saísse e com desprezo pelas ninharias do seu país. Chegara o dia D e, ela, ainda coxeando com o medo e a perna partida, vira que tirara um dezassete, “Ó meu Deus!!!!!!”, berrava ela dentro daquele corpo que nunca demonstrava mais do que um enfadonho estado depressivo. Deste modo, só conseguira entrar em Farmácia, com o orgulho, gravemente, aleijado. Fora viver para Lisboa, num quartozinho, no Intendente e, rapidamente, percebera que, até Lisboa sofria da mesma quantidade de mitras que a sua cidadade natal. Isso ainda a entristecera mais. No início das aulas, alguma esperança vira à tona, pois ela achava que ia recuperar o orgulho, pois naquele “curso facílimo de coisas que eu já li”, não ia ter notas inferiores a dezassetes. Mal entrara numa aula de química qualquer, vira-se grega, naturalmente, como o resto dos colegas, que ela persistira em ignorar, rejeitar. Os colegas, por outro lado, tiveram a coragem de expressar o quão perdidos se sentiram com aquelas duas horas de palavras, anteriormente, inconcebíveis. Cátia recusara, SEMPRE, o falhanço, claramente, por isso entendera que seria uma questão de directas a decorar livros, sem entender os porquês das coisas, que a levariam a superar a “minúscula dificuldade” que sentira. However, as coisas acabaram por não ser tão simples e ela continuava, sem ter grande noção disso, COMPLETAMENTE perdida entre tanta coisa para fixar, que o seu cérebro, fraco como o resto do corpo, não conseguiria suportar. Cátia, determinada noite, decidira sair à rua e ir perguntar a um dos drogados do Intendente se lhe arranjavam anfetaminas, eles riram-se por ver aquela rata de biblioteca a pedir tal coisa, mas mal ela mostrara uma nota de cinquenta euros, viram-se prestáveis e trataram de fazer os connects precisos. Cátia experimentera as anfetaminas, na mesma noite, depois de esperar que o drogado fizesse os precisos contactos, que duraram umas duas horas. Chegando ao seu quarto, sentou-se, esmagando o seu rabo minúsculo e flácido contra os lençóis bordados da bisavó e olhava para as coisinhas que tinha arranjado, com todo o mau estar do inferno pendurado das orelhas às unhas dos pés. Rapidamente, agitando o mau estar, de forma brusca, engolira aquilo e abrira os calhamaços que tinha de abrir. Fantástica, a maneira como o seu cérebro se focava, só com umas coisinhas daquele tamanhozeco. De forma voraz, voltou a repetir e a repetir o negócio daquela noite e, finalmente, o seu corpo estava entregue às anfetaminas e às suas mil maravilhas. Cátia, Cátia...tenho muita pena de ti, pena desse teu feitio, pena desse teu ódio, pena dessa tua rejeição à vida, pena que haja gente como tu, espalhada por todos os cantinhos poeirentos do planeta, pena que haja gente que tenha de desenvolver uma concepção da vida igual à ti...por pouco, tornava-me uma Cátia!
Vá lá...Deus desceu-me à terra em forma de versos e poesias.

(imagem de origem mil desconhecida.)

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